(Editorial do jornal Folha de S. Paulo, publicado na edição desta terça-feira, dia 16/03/10)
Com o caso das prisões capixabas, o país passa por novo constrangimento internacional na área dos direitos humanos.
CERCA DE 250 pessoas, militares e civis, haviam sido presas naquela noite, por suspeita de participação em desordens contra o governo imperial. Corria o ano de 1823; a cidade de Belém se conflagrava. Determinou-se que os presos ficassem confinados no minúsculo porão de um barco. Apenas uma fresta permitia a entrada do ar. Amontoados, sufocavam. Pediram por socorro.
Um balde de água surgiu da pequena abertura. Os presos se engalfinharam no esforço de alcançá-lo. Para impor "a ordem", tiros de fuzil se dispararam a esmo sobre a massa humana.
Jogou-se a seguir uma quantidade de cal sobre os desesperados, e cerrou-se a fresta. Apenas quatro pessoas foram encontradas vivas no dia seguinte.
Ainda que especialmente dramático, esse episódio da história brasileira, conhecido como o massacre do brigue "Palhaço", não destoa daquilo que se sabe, por exemplo, a respeito das condições em que escravos eram transportados nos navios negreiros: chegava a 25% a proporção dos cativos que, aglomerados em porões imundos, não resistiam.
Cenas de quase dois séculos atrás revivem nas imagens da carceragem de cidades como Vila Velha, Cariacica e Serra, no Espírito Santo. Objeto de reportagem da Folha, no domingo, o quadro de horrores nas delegacias daquele Estado foi debatido ontem no âmbito da Comissão de Direitos Humanos da ONU, em Genebra. Duzentos e vinte e dois presos dividem uma área destinada, no máximo, a 36 seres humanos, em Vila Velha. Em Cariacica, os que não entram nas celas são algemados pelos pés no corredor.
Na ONU, o discurso das autoridades brasileiras tenta dissipar a horrenda impressão. Investimentos estão sendo feitos para melhorar as condições carcerárias, o deficit de vagas nas cadeias é um problema antigo, e não haverá presos nas delegacias de Vitória em março de 2011.
Não cabe demonizar a administração do governador Paulo Hartung (PMDB) como responsável exclusiva por cenas que, a rigor, não são estranhas a nenhum lugar do país. Um Estado como São Paulo, palco do célebre massacre do Carandiru, em 1992, tem um histórico de horrores que, a custo, só recentemente começou a ser enfrentado.
Tampouco se trata de recompensar com luxos e confortos pessoas que, com frequência cada vez maior, praticam atos de selvageria ainda mais chocantes do que os descritos aqui.
Mas a prevalência da lei e da ordem é inerente à civilização, e não à barbárie. São de barbárie as cenas que se veem nas prisões brasileiras, e que a inércia das autoridades patrocina.
Complacente com o desrespeito aos direitos humanos nas tiranias mais notórias do planeta, o governo Lula passa por mais um constrangimento internacional no escândalo das prisões capixabas. Não está sozinho, entretanto, nessa vergonha: o descaso das autoridades, qualquer o partido a que pertençam, e de setores da própria opinião pública, fazem-lhe companhia nesse ponto.
Com o caso das prisões capixabas, o país passa por novo constrangimento internacional na área dos direitos humanos.
CERCA DE 250 pessoas, militares e civis, haviam sido presas naquela noite, por suspeita de participação em desordens contra o governo imperial. Corria o ano de 1823; a cidade de Belém se conflagrava. Determinou-se que os presos ficassem confinados no minúsculo porão de um barco. Apenas uma fresta permitia a entrada do ar. Amontoados, sufocavam. Pediram por socorro.
Um balde de água surgiu da pequena abertura. Os presos se engalfinharam no esforço de alcançá-lo. Para impor "a ordem", tiros de fuzil se dispararam a esmo sobre a massa humana.
Jogou-se a seguir uma quantidade de cal sobre os desesperados, e cerrou-se a fresta. Apenas quatro pessoas foram encontradas vivas no dia seguinte.
Ainda que especialmente dramático, esse episódio da história brasileira, conhecido como o massacre do brigue "Palhaço", não destoa daquilo que se sabe, por exemplo, a respeito das condições em que escravos eram transportados nos navios negreiros: chegava a 25% a proporção dos cativos que, aglomerados em porões imundos, não resistiam.
Cenas de quase dois séculos atrás revivem nas imagens da carceragem de cidades como Vila Velha, Cariacica e Serra, no Espírito Santo. Objeto de reportagem da Folha, no domingo, o quadro de horrores nas delegacias daquele Estado foi debatido ontem no âmbito da Comissão de Direitos Humanos da ONU, em Genebra. Duzentos e vinte e dois presos dividem uma área destinada, no máximo, a 36 seres humanos, em Vila Velha. Em Cariacica, os que não entram nas celas são algemados pelos pés no corredor.
Na ONU, o discurso das autoridades brasileiras tenta dissipar a horrenda impressão. Investimentos estão sendo feitos para melhorar as condições carcerárias, o deficit de vagas nas cadeias é um problema antigo, e não haverá presos nas delegacias de Vitória em março de 2011.
Não cabe demonizar a administração do governador Paulo Hartung (PMDB) como responsável exclusiva por cenas que, a rigor, não são estranhas a nenhum lugar do país. Um Estado como São Paulo, palco do célebre massacre do Carandiru, em 1992, tem um histórico de horrores que, a custo, só recentemente começou a ser enfrentado.
Tampouco se trata de recompensar com luxos e confortos pessoas que, com frequência cada vez maior, praticam atos de selvageria ainda mais chocantes do que os descritos aqui.
Mas a prevalência da lei e da ordem é inerente à civilização, e não à barbárie. São de barbárie as cenas que se veem nas prisões brasileiras, e que a inércia das autoridades patrocina.
Complacente com o desrespeito aos direitos humanos nas tiranias mais notórias do planeta, o governo Lula passa por mais um constrangimento internacional no escândalo das prisões capixabas. Não está sozinho, entretanto, nessa vergonha: o descaso das autoridades, qualquer o partido a que pertençam, e de setores da própria opinião pública, fazem-lhe companhia nesse ponto.
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