terça-feira, 2 de março de 2010

O Iraque e Lawrence da Arábia

Por Pedro Valls Feu Rosa*

Logo após a invasão do Iraque foram amplamente noticiadas no Ocidente as corajosas declarações do Arcebispo de Canterbury, no Reino Unido, alertando sobre os danos terríveis que tem sido provocados naquela região.

Criticando a ação da Inglaterra e dos Estados Unidos da América, que tachou de “imperialista”, o Arcebispo chegou a dizer que, no Iraque, “a definição ocidental de humanidade não está sendo observada”.

O Coronel Lawrence, do Exército Inglês, horrorizado com a barbárie imposta ao sofrido povo iraquiano, também foi à imprensa dar o seu testemunho e protestar. Eis as suas declarações:

"O povo inglês caiu numa armadilha na Mesopotâmia. Ele dificilmente poderá sair de lá com dignidade e honra. Ele está sendo enganado pela dissimulação constante da verdade. Os comunicados de Bagdá estão defasados relativamente aos acontecimentos; eles faltam com a sinceridade e são incompletos. A realidade é pior do que aquela que nos tem sido dita. Nossa administração é mais ineficaz e mais sangrenta do que aquela que nos descrevem. Ela é indigna de nossa história imperial e revelar‐se‐á brevemente muito abjeta para um tratamento ordinário. Nós estamos às vésperas de um desastre".

Na mesma entrevista, este Coronel denunciou fatos gravíssimos:

"Cidades inteiras foram arrasadas pela aviação inglesa. Em quatro meses, 10.000 pessoas morreram. Os blindados, por terra, forçavam as populações em pânico rumo a campo aberto, onde poderiam exterminá‐las melhor".

Pessoas corajosas e de ideal, o Arcebispo de Canterbury e o Coronel Lawrence. Merecem o reconhecimento das pessoas de bem. Porém, mais importantes do que estas duas entrevistas são as datas nas quais elas foram dadas. As datas dos jornais é que devem ser motivo de reflexão para todos nós, como mostrarei a seguir.

O Arcebispo de Canterbury condenou a invasão do Iraque em uma entrevista publicada pela rede “Sky News” no dia 25 de novembro de 2007. O Coronel Lawrence condenou a invasão do Iraque em uma entrevista publicada pelo jornal “Sunday Times” no dia 22 de outubro de 1920. Sim, 1920! 87 anos antes!

Em verdade, este “Coronel Lawrence” vem a ser o famoso “Lawrence da Arábia”, retratado em tantos filmes, e que andava pela região das “1.001 noites” no início do século passado.

É aí, no detalhe das datas, que ficamos chocados com a absoluta falta de sensibilidade e até de clemência da orgulhosa e cristã civilização ocidental, há quase um século causando dor e sofrimento a um mesmo povo.

Foi diante destas duas entrevistas que, chocado, fiquei a pensar em Hamza Hameed. Trata‐se de um aleijado. Ele perdeu a perna direita e um dedo da mão esquerda durante um bombardeio aéreo. Hameed não estava em armas – ele simplesmente passava por um mercado popular de Bagdá.

Este não foi um caso isolado. Há poucos dias li um chocante relatório dando conta de que o número de iraquianos aleijados já beira a casa dos três milhões, alguma coisa em torno de 10% da população.

Segundo consta, apenas um quarto destes aleijados conseguem próteses que suavizem suas vidas, pois a falta de materiais é aguda. Tão aguda como a miséria deles, condenados a viver com uma ajuda mensal equivalente a cerca de US$ 35.

Agravando este já sério quadro, consideremos que passa de cem mil o número de civis iraquianos que perderam a vida desde 2003, vítimas de violência. Há também o sofrimento das crianças. Segundo consta, a desnutrição infantil já ultrapassou os índices do Burundi, do Uganda e até do Haiti – basta dizer que estima‐se em 70% o total de escolas que sequer água potável tem.

Enquanto isso, em 2003, o jornal francês Le Monde noticiava que uma única empresa norte‐americana foi agraciada com contratos no valor total de US$ 600 milhões, envolvendo desde exploração de petróleo até obras de reconstrução no Iraque. Esta não foi uma notícia isolada: no dia 12 de março do ano seguinte o jornal Cape Cod Times denunciou que “muitas das empresas que receberam contratos no valor de US$ 130 milhões ao longo desta semana para realizar obras no Iraque tem fortes conexões em Washington”.

No ano de 2007, estas obras de reconstrução foram assim descritas pelo jornal The New York Times: "Inspetores descobriram que em uma amostra de oito projetos que os Estados Unidos declararam um sucesso sete não funcionavam. Os Estados Unidos haviam admitido anteriormente, às vezes sob pressão de inspetores federais, que alguns dos projetos de reconstrução haviam sido abandonados, atrasados ou pessimamente executados. As inspeções abrangeram do norte ao sul do Iraque, e cobriram projetos tão variados como uma maternidade, alojamentos para as forças iraquianas e uma estação de força para o aeroporto de Bagdá”.

Em 2008, o mesmo jornal divulgou que “gigantes petrolíferas ocidentais estão em fase final de acertos com o Iraque para voltarem a explorar as reservas petrolíferas do país sob contratos firmados sem concorrência”.

E curiosamente, há poucos dias, tive acesso a uma outra notícia, publicada pelo jornal USA Today, dando conta de que os rifles utilizados pelas tropas norte‐americanas tem gravados neles versículos da Bíblia. Em um deles a reportagem localizou uma referência a João 8:12: “Eu sou a luz do mundo: aquele que me seguir não andará na escuridão, mas terá a luz da vida”.

Diante desta realidade, tenho que nunca tão acertadas as palavras de Eugène Ionesco: “Em nome da religião, constroem-se piras. Em nome das ideologias, pessoas são torturadas e mortas. Em nome da justiça, são injustiçadas. Em nome do amor a um país ou uma raça, outros países e raças são desprezados, discriminados ou massacrados. Em nome da igualdade e da fraternidade, praticam‐se a perseguição e o ódio. Não há nada em comum entre os meios e os fins. Os meios vão muito mais longe que os fins. Na verdade, religião e ideologia são apenas álibis para esses meios”.

* Pedro Valls Feu Rosa é Desembargador do Poder Judiciário Brasileiro. O artigo em questão foi publicado pelo jornal Pravda, da Rússia.  

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